6.5.07

Um texto


A noite está cheia de luz. O rádio toca baixinho, diria quase imperceptível para o comum dos vizinhos que se incomodam em dormir. Os dedos agitam-se no teclado, percorrem demoradamente cada palavra e vão alinhando o texto. O cabelo em desalinho, adivinha as horas, percebe a nudez dos pensamentos que se recusam a transpor as mãos esgotadas, as pernas dormentes da posição esquecida em frente ao ecrã. No entanto ele permanece na sua melancólica desdita de escrever. Há nele um sorriso misterioso, imperfeito e louco, que nada explica.
Já é quase madrugada, o dia foi tão longo, como todos os dias teimam em ser, como todas as caminhadas se tornam dolorosas, quando os pés se recusam a obedecer, e as mãos incham de se arrastarem atrás de nós, sem uso, sem expressão. Não é o caso; - o escritor permanece no uso da escrita; defronte dele, não se nota um ecrã, mas olhos vidrados, pedaços de água, que caem de vez em quando, da luz que lhe rói as pupilas, das imagens que desenrolam o filme que lhe atravessa a alma.
Há desejos escondidos no esconso de um coração solitário e clandestino.
Ela lá estava; - permaneceu inquieta e feminina, sem nada para ousar, os pés bem assentes nessa terra de onde se recusa a partir. Ficou uma flor no cabelo, e um gesto bem desenhado com o dedo indicador, por baixo do seu lábio, como se a escrevesse, como se a inventasse. Afinal nada mais foi que o pedir de um beijo, sempre adiado, sempre questionado.
No coberto da tarde, quando permanecia diante dela, as águias costeiras voaram em redor dos dois. No voo picado, na procura de alimento, percebeu o escritor, o quanto é difícil sobreviver sem luz, o quanto o rosto daquela mulher lhe atormentava o caminho, e ao mesmo tempo o empolgava na certeza de um terno e simples olhar, na macieza das palavras que o confundiam e inebriavam, como se um simples gesto tivesse o efeito de uma gola macia que protege um colo ao vento gelado que vem do mar.
Do rosto inexpressivo do escritor, descobriu ela uns olhos mendigos, incessantemente cravados no mais puro que o coração dela continha, e ela, no espaço das sete ondas requebradas na areia, soube estender a mão e deixar-se levar bem junta ao ombro do homem que a queria.
A noite já se vai despindo. Molha o rosto, e olhando o espelho, percebe as rugas de tantas vezes se olhar. O escritor olha pelo canto do olho, a sua cama completa. Nela, nessa cama infinitamente despida, repousa hoje um corpo diáfano, um corpo com o sabor das marés, com o gosto breve dos desejos satisfeitos, com lábios que se deixaram calar. Pelo canto do olho, percebe o escritor, que escreve o discurso simples e directo, dos que se encontram e se amam, e das suas mãos, voam as palavras que nunca saberá dizer, mas que se colam nestas folhas, onde se retrata de toda a sua paixão.

4 comentários:

Roxanne W. disse...

Jorge passei por aqui e decidi deliciar-me com esta sobremesa com que me presenteias... com este adoçicado sabor a marezia das palavras...muito bonito, é de ler de um só trago, quase sem respirar para ficar sem fôlego!beijinhos grandes

Isa e Luis disse...

Olá amigo,

Delicado, envolvente e delicioso como tudo que escreves.

Beijinhos

Isa

Vanda Paz disse...

Um texto lindo, envolvente , profundo... muito ao teu estilo...

Beijinho

Boa semana

PoesiaMGD disse...

Não é demais reler o texto! Muiot belo!
Um beijo