17.1.07

A Janela


foto de Hugo Amador

Recostado no meu sofá, chamei o João, e uma pequena palavra soltou-se-me da boca:
- João, abre-a.
O João sentou-se aos meus pés. A luz pulsou em incontida energia, e a sua pequena boca soltou um ah de enormidade.
Todas (ou quase todas) as tardes, o nosso pequeno gesto se repetia. Por aquela janela, toda a perfeição e sonho se construía. Mesmo em intervalos de distracção, debruçávamo-nos de inveja no carro prateado, na sopa de sabor único, no sabonete sem cheiro que nos deixava loucos de felicidade, e o João dizia: - Pai, compra-me! Pai dá-me! Então voltávamos ao que passava na janela, já com mais atenção. Sim ali tudo era verdade. Nua e crua, como nunca se teria visto sem aquela janela aberta.
– Para quê a matemática, ou o esforço? Para quê o trabalho? O calor? O frio? Para quê uma viola ou um livro? Bastava a janela aberta, a mão crispada do João perante as personagens que nos piscavam o olho ali mesmo ao pé. Sabem, já sou íntimo de uma tartaruga reconvertida a humana, e inimigo feroz de uma ratazana que quer destruir um lago.
Um casal acaba de fazer amor. O homem olha uma suposta janela e afirma vir a Primavera, a mim, que desgraçadamente sinto o Inverno a bater nos vidros.
Ignorante que eu sou – olhei outra janela. Como posso agora agarrar as sensações, inverter as cores. Vestir-me de mágico ou correr num autódromo.
- Olhar outras janelas é já incontidamente uma revolta! Desconcentro-me e perco as massas de malabarista, o dom da palavra de qualquer político. Sinto-me mal na gabardina de qualquer treinador de futebol.
- Pai! Pai! – Volto os olhos, o João olha-me na nudez dos seus poucos anos, interrogando-me, num olhar esquisito, cómico, invulgar. Sorrio, contagiando-me até às gargalhadas. O miúdo saltita-me no colo. – Tu estavas a dormir, Pai. Já a fechei! – Tenho aqui o livro. Pai lê!
Peguei-lhe a mão. Abri de par em par a janela da varanda. Peguei-lhe ao colo e abracei-o. Sim, que eram janelas, e prédios que se viam das janelas, mas era a maior sensação de liberdade e de ternura que sentia. Olhei-o e olhei para dentro do mundo, olhei as horas perdidas no sofá, e dei comigo sentado no chão, pernas cruzadas, lendo-lhe o livro, imaginando como aquela flauta mágica tocava só para nós dois.
Entretidos, ouvimos ao longe uma voz de mãe, chamando – então hoje não se janta?
Olhámo-nos os dois e dissemos em coro: Mãe anda, o jantar sabe esperar.

Sem comentários: