13.9.06

Um Homem e uma Mulher - A despedida

O Homem percebeu que ela se levantava, sentiu o roçar dos lençóis por aquela pele macia e quente que tocara voluptuosamente. Os olhos semi-abertos, o torpor de uma noite selvagem e inenarrável acariciou-o, e os seus lábios retomaram húmidos a memória de cada beijo dado, a impaciência dos gestos que se inventavam. O seu corpo sentiu-se desligado do outro que fora seu, e percebeu a manhã, o fim de uma noite que talvez não voltasse. Remeteu ao silêncio todo o seu corpo, concentrou-se na respiração dela, quis percebê-la antes de falar e perceber onde ela estava.
Não foi preciso.
- Ali estava ela, debruçada sobre ele, os seus seios doando-se, os seus cabelos afagando-o.
- Vou-me embora, já é tarde.
- Porque não ficas, depois levo-te… Espera…
- Não, não vale a pena, tenho de ir.
A Mulher saiu dele, endireitou-se e sorriu, e depois como se já tivesse ensaiado aquele discurso, rematou certeira a incontável questão:
- porque me falas em esperar?
A Mulher vestindo-se, foi caminhando para longe dos seus braços, sabendo o quanto era importante aquela conversa, aquela derradeira conversa.
- Porque me falas de esperar, quando o que sinto é a presença constante de nos termos?
- Falas-me de parares num qualquer cais, como se a vida não fosse um constante movimento…
- Se eu gosto de estar contigo, de te fazer feliz - disse o Homem - como não te pedir que fiques?
- Mas aquela Mulher, estava decidida a não esperar, e logo adiantou:
- Não, não é esse o caminho que quero. Apenas percebe o quanto a vida nos cria barreiras incontornáveis, como não podemos abdicar das amarras que temos. Não consigo encontrar espaço, por isso falo em voar, em me manter à tona do que neste momento é impossível. Há sempre espaço para a fuga, mas a fuga sem ser assumida, transforma-se em voltas em círculo, transforma-se num desespero, onde os momentos já não são aquilo que aceitámos, mas são um caminhar constante rumo ao imaginário.
Só que a vida é real de mais para que eu aceite este tipo de caminhos.
A Mulher meneou a cabeça, dando um jeito no seu cabelo, escovando-o com a força das suas palavras, olhando o espelho, como se a primeira pessoa que quisesse convencer fosse mesmo ela. Os seus seios já cobertos, a pequena tanga dando o contorno às suas coxas, desenhavam a força daquele momento.
O Homem pensava e desejava-a no mesmo momento. Queria-a e queria-a perceber. Não sabia qual a razão que iria vencer. Abandonou-se na cama, imóvel, escutando-a… as palavras dela, entravam nele, e dominavam-no como se algemas fossem…
- Eu sei o que o meu coração guarda, sei o quanto é bom pensar, sonhar, tocar-te, ter-te. Mas não consigo sair daqui. Não sei chamar-te de meu amor, porque o amor é incondicional, não se verga ao medo da clandestinidade, dos episódios fugazes, dos quartos escondidos, de não querer acordar barulhos que nos denunciam. Sim, não sei ainda chamar-te de meu amor, porque não me sinto tua, porque não posso dar-me na plenitude.
O Homem percebeu o quanto tinha disposto dela, forçando-a à sua vontade, ao esquecimento das regras com que se enfrenta a vida, a deixar uma outra história incompleta, a fazer perigar um outro destino.
Mas a sua vontade despedaçava-lhe qualquer pensamento, que não a vontade de a ter. Calou-a, sem mesmo lhe dizer nada, estendendo-lhe o olhar de um amante, que pede, e falou:
- Um dia disseste, clara e lúcida, que rejeitas ser amante, que és plena e de corpo inteiro, exactamente o mesmo que eu penso, e para o qual não quero prosseguir. Não me aceito a dividir-te, não me percebo dividido. Existe um frémito de magia nas minhas mãos, que se torna real no teu corpo, na forma como nos demos, no sabor do teu corpo estendido sobre o meu. Isto, ninguém nos tira, e por isso fico acordado a todas as horas, mas numa espera que não tem hora, que não tem ritmo, que se transborda apenas no momento certo, no momento que poderá existir, mas que nasce do nada, que nasce da vontade, e essa vontade, e esse desejo, são as coisas que permanecem. Tudo o resto são dores e sofridas vontades sem lugar.
A Mulher recolheu-se nas lágrimas que a paixão sempre faz transbordar, percebendo o quanto seria difícil guardar aquelas palavras, aquele leito, aquele quarto, aquele Homem. Não quis dizer adeus, não quis fugir, sabendo que não poderia ficar. Aproximou-se mais uma vez, já vestida, já tratada, olhou-o, com o fino olhar sem distâncias, a boca quase colada à dele, com a infíma distância que lhe permitia falar, e sussurrando, entregou-lhe as derradeiras palavras que lhe podia entregar:
- Sei onde estás, sei onde te procurar, sei que será melhor repousares nesta terra firme onde te sentes com mais espaço, com mais serenidade. Não, não te acordarei aos primeiros raios da manhã. Esperarei pelas noites mais frias, pelos meus dedos frios, que te querem no quente do teu leito. Esperarei que os teus olhos me queiram e saibam dizer sim, apenas quando o sim for dividido entre nós, sem barreiras, sem projectos, sem nada que nos possa cobrar um destino diferente, daquele que já a vida nos escolheu.
Por agora, apenas serei tua, onde mais importa, em cada memória, em cada pensamento, nas nossas canções, nas praças de todas as cidades onde fomos felizes. Tu ficarás aqui, e eu recordarei sempre esse teu peito pronto para mim, esse lugar vazio onde só eu caibo. O Homem entendeu que a tinha perdido, que a tinha possuído pela última vez, que a mais grata amante de sempre lhe fugia dos dedos, como a água transparente das cascatas, como as marés que nunca se podem travar. Olhou-a com a ternura que tudo tem quando acaba, quis senti-la uma última vez, recordar aquele rosto, tomá-lo para toda uma vida. E com a esperança de quem ama, antes que aquela Mulher fugisse, deixou-lhe nas mãos um último recado, com um beijo e um esgar de saudade que golpeava o seu coração:
- Fica nesse teu cais, eu irei como sempre navegando de porto em porto, colhendo a vida dos pedaços que ela tem para mim, retornarei sempre a esse abrigo, onde sei, te terei à minha espera, sem saberes o dia que voltarei. Voltarei, e tu serás sempre o meu porto. E se o vento estiver levantado, se a noite for muito escura, acende à janela o teu coração, que eu mesmo de longe, saberei quando voltar...
Na ombreira da porta, o rosto escondido, o coração tremendo, ele viu pela última vez o seu amor. Aspirou o perfume generoso dos lençóis, o cheiro daquela mulher, e soube que um amor daqueles, não tem volta, mas que a memória há-de sempre viver enquanto cada Homem, quiser a sua Mulher.

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