Hoje o dia sabe-me mal. Trinco a poeira do caminho. A
estrada estafada e quente, o sol encostado ao tecto a queimar-me. Os passos
doem, as solas das botas caminheiras, descolam-se, lambem o chão como cães de
caça, línguas soltas, e eu vou seguindo sem me importar onde vou chegar.
Há no caminho bancos de pedra, onde repouso com o prazer
das pernas doídas, aliviadas. Pedra fria, deixa que o silêncio fale com a
sabedoria imprópria dos que por lá se sentam, papagueando.
Há gente sentada no chão – invejo-os. Quero aquela
vontade de me estender e a paz dos olhos fechados sem medo.
O caminho chama-me. O tempo do meu relógio é velho,
apressado. Os ponteiros giram arrependidos e marcam na pele cicatrizes que
apenas morrem e não ressuscitam. Nada conta, nada traz que eu não permita.
Apanho na beira da estrada uma vara velha, castanha,
usada, acompanha-me desde aí até que a queira deitar fora, por agora, adoça-me
os passos. Leio os nós e as marcas de outras mãos que se serviram e deixaram
histórias de pauladas, de vencedores e vencidos, de mãos maceradas, de
compassos e de riscos e vincos, e de números que se escrevem a metal, marcando
datas, inscrições de quem a usou e lhe falou no caminho.
Ergo-me com a vara que não há-de ser minha, deixo o meu
lugar, olho longe no caminho, e por um instante volto-me, para olhar esta
ladeira donde venho, que já não me custa, porque passou, e nela encontro a
força do impulso orgulhoso que me faz olhar o que ainda há por passar. Ganho a
força das escolhas que me fazem avançar.
Começo a entender que não há árvores nuas, mesmo no
inverno. Os pássaros nascem e partem, são os frutos do ar onde as árvores
deveriam estar.
A tarde decidiu ficar fresca e serena. O vento amainou.
Nada digo, nada desejo, sou apenas caminhante que sente e deseja sem voz.
Um cão passeia, a trote. Um dia quero ter um cão assim,
magro, altivo, que coma à minha mão. Nunca vi um cão chorar. Queria saber o que
me falta para os entender. Para falarmos. Gosto de os ver, de faro aguçado, de
quem não confia apenas nos olhos e cheira e escuta, soerguendo as orelhas,
empurrando o nariz mais longe. Apenas querem ser cães e nada mais querem que o
que têm.
Deixei de vez a minha vontade de me sentar nos bancos que
o caminho traz, sigo em frente, aprecio os desvios como aventuras que me servem
em bandeja. Ao longe a cidade começa a preparar-se para dormir, exactamente
quando as luzes se acendem na rua. Os carros guincham da pressa dos seus
hospedeiros. Olho pares de gente, olhos comprometidos, exangues do pecado em
que crêem, saindo das pensões cinzentas, onde se aqueceram um par de horas, aliviados
do gelo das escolhas antigas a que retornam apressados, mornos nas renúncias
negociadas antes das mãos se soltarem até ao próximo dia.
Excomungo os meus pensamentos, tomo as dores do mundo e
rio em gargalhadas escancaradas. O mundo não me dá confiança nem me autoriza a
que o tome em mim. Os caminhos mudam de piso apenas se nos mexermos.
Gostava de ter um botão incrustado em mim, apenas de
ligar e desligar, um “on-off”, que me ligasse e desligasse desta corrente louca
dos pensamentos, dos ses, destas torrentes de epifanias que como ondas de uma
praia se levantam e morrem.
Desisto de partir, tomo o manto de caminheiro, e com ele
hei-de dormir e comer, e ter-te a ti meu amor, nas lajes frias e nas camas de
caruma onde nos deitarmos para amar. Hei-de ter este manto vestido cada vez que
nascer e dentro do esquife onde repousarei de olhos fechados, sem medo. Hei-de
vestir.me de caminheiro no meio dos bandos de pássaros e recolhido nas árvores
vestidas. Hei-de ser caminheiro em cada página deste calendário circular e
contínuo, onde em cada momento saberei quando estar nú.
2 comentários:
Gostei muito.
Abraço
cecilia
quando tiveres desses dias, vem até à praia e procura por um farol... bj, ana
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