24.6.11

O meu olhar em ti













Demoro o meu olhar, mais que humanamente aceitável, em ti. Olho-te, debruçada estendendo a roupa no varal, vazio, onde brilham as lágrimas duma madrugada fresca que já passou e não se despediu.
No sol que se alarga na faina do seu próprio brilho, ouvem-se ao longe as vozes dos que o acordaram. Hão-de chegar às casas nas horas vespertinas, onde os miúdos brincarão e os seus braços esguios se hão-de esticar na procura do que resta de um dia longo, no peito dos que regressam.
Há mulheres em cada fogão, e o cheiro das panelas paira vagamente, como a fome, adiada.
Tu não. No varal da roupa, percorres-me, o teu peito é um lençol de algodão estendido, alfazema que se entranha nos meus sentidos e me delicia, e louco procuro no teu olhar o sinal da verdade que não mude.
Desvendo sorrisos misteriosos, como se houvessem memórias em cada peça da tua roupa que estendes ao vento e ao sol. Sinto a tua pele dando corpo aos lençóis que se hão-de deitar contigo, e nasce o desejo de te ter, encontrando nos teus pulsos a força de te agarrar e rolar em cada pedaço de erva fresca.
O teu corpo, em movimentos de deusa, separa-se da tua blusa, e os teus seios descobertos, abrem-me a boca e calam-me como se nada mais houvesse a ver – como se os desejos tudo toldem, tudo expliquem. Se tudo fosse mais fácil e simples…
Demoro um segundo mais o meu olhar em ti, a viagem longa, já me traz quase de volta, e os meus dias contigo, são já a história de epílogos. Os cheiros e os gestos fazem parte deste novo manual de sedução e amor que são já nossos, tudo se consente nesta história, como noutras que hão-de chegar. Há o silêncio inquieto da tarde, o vento que brinca em sons, como o barulho surdo e oco da roupa que dança segura das molas, e os pássaros que são folhas verdes a cantar. 
Nada mais me detém, apenas vou, apenas te deixo, como se nada mais importasse, apenas tu, enredada nos teus tecidos, absorta, linda, olhando de frente a roupa que te prende, que os olhares há muito os perdeste por cima dos varais, onde o ocaso desce.

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