31.3.08

Na sombra de mim...


Dueto com Turtlemoon


I
Com os olhos molhados, reli mais uma vez o papel com vincos bem marcados, que já desdobrara dezenas de vezes: “… Escrevo-te agora com lágrimas de chuva e sorrisos de lua. Sei então que sou sempre tua”. – era assim que começava a carta que me enviaste.
Percebi nas palavras a urgência de nos termos, de largar este país tão longe, onde apenas podia ter as tuas palavras, o teu coração, a memória do teu cheiro, do inconfundível toque dos teus dedos, quando me davas a mão junto ao rio, e nos esquecíamos das horas, do frio, e sentíamos os sorrisos embalando o coração...
Continuei a ler: “… Quis ser água, em teu olhar: transparência de ti, chuva que se queda e te beija, desejo inconstante que tal como as marés, vai e vem, em laivos de loucura e ternura. Escrevo-te, assim, com as lágrimas doces de recordação. Sei que algures, na noite, sou a insónia da tua alma, o sonho do teu espírito e a inquietude do teu corpo…”
Senti na alma o quanto aquele texto me deixava o corpo arrepiado. Percebi a intensa proximidade das nossas almas e corpos, o quanto cada palavra revelava da incontida urgência de amar, de transpor em cada gesto a química inexplicável da paixão, a respiração profunda e ofegante dos que se querem e se amam nos instantes entre um e o próximo, sem quebras sem intervalos.
Dei comigo a telefonar para a agência: necessitava de um bilhete de avião que levasse meu corpo para onde o coração já tinha partido, faz tempo. Arrumei tudo o que precisava - quase nada - e rumei rapidamente ao aeroporto, com um SMS pelo meio: vou a caminho de ti, dos teus braços, dos teus beijos - nos meus olhos só tu repousas, em breve seremos felizes...
Já no avião, desdobrei pela enésima vez a tua carta, e reli as tuas palavras: “… Como se a felicidade não fosse também feita de sonho e imaterialidade... Esqueceste-te de mencionar que a pressa é a da impulsividade, o comboio é o do desejo e o bilhete é o da esperança?!
Sim, por que na verdade, és náufrago na doce chuva que te inunda, e percorre, em paixão mas estás preso ao teu alpendre, magnífico de amor, que te faz refém em trajecto de recordação, assim são as verdadeiras amarras do teu coração...E as águas do teu rio desaguam na profundidade do meu mar, subtilmente velado pela magia do vento, expresso nas lágrimas de chuva e nos sorrisos de lua. Serei sempre tua...fantasia...mistério..e emoção, enquanto a música cantar…”

II
Deitados na cama, exaustos da espera e do frenesim próprio das cidades, foi mais uma vez naquele pequeno canto do céu, que nos deixámos ficar, quietos, dormentes, suados do desejo completo, dos nossos corpos dados, do reencontro dos gestos só nossos, das palavras que apenas os teus ouvidos escutaram, da chuva que caiu apenas para nós de encontro à vidraça, numa melodia que nos abraçou e se reflecte nos teus olhos, nas fantasias que só a mim ousas deixar para que as desenhe no teu corpo.
Rompemos os dias e as noites, num murmúrio quente, deixamos que nossos olhos se encontrem, sem perceber as linhas do teu rosto, apenas nos olhamos e fixamos os momentos, porque na memória não haverá espaço para um poema tão grande.
Amo-te… oiço.
Amo-te – digo, e amamo-nos outra vez, na irrepetível energia dos amantes, como se o amanhã não viesse e a madrugada perdurasse em nós…
Nos teus olhos havia um sorriso do tamanho do Mundo, entraste na minha alma enquanto me segredavas:
Meu amor, escuta a agitação do mundo lá fora, e a dos nossos corações, feita de lugares que se agitam, repousam e entrecruzam, como ondas a bailar em labirinto de mistério, irrepetibilidade e poesia...
Dizes-me dos dias onde não nos pertencemos, lembra-te um suspiro, ao vento! E confessas: - embora a madrugada, oniricamente, me faça tua (pretensa) amada, sei apenas que sou anjo que te inspirou, na parte de ti que desertou, da rotina vazia que mecaniza a tua acção e te restringe a um espaço sufocante em tempo errante...
Agarras-me, sem pudor, no calor das palavras que me transportam como coração de chuva em essência de lua.
Psssttt’, escuta os ecos que gritam "amor", em contornos de impossibilidade e dor...Onde estás, afinal?
Olho nos teus olhos abrindo-me, esventrando-me para ti, e estou aí nas tuas mãos, estou no Vento que sussurra este amor imperceptível, nos pedaços de papel abandonados aos cantos das mesas onde te espero e escrevo a minha pressa, estou no raio de sol que me aquece e não se compara ao conforto dos teus seios, nem à doçura do teu pescoço, onde me perco em beijos longos e calmos. Estou na chuva louca que intimida as vidraças, nos temporais que me assustam da força, que parece tão ténue quando me lembro de como te quero e desejo. Estou por aqui, nos livros onde procuro as palavras que te possam dizer, que te possam descrever, e que apenas se desenham nos traços, nas marcas do rosto, que dizem tudo. Estou por aqui, onde não me ouves, onde não me vês, onde não me sentes, e continuas solene e firme na convicção do teu desejo. Estou por aqui, mesmo ao teu lado, nesta viagem que nunca soubemos donde partiu, nem queremos saber onde um dia acabará.

III
No começo da tarde, dou por ti sentada no alpendre. Dizes-me que te refugias na sombra de mim para que, na quietude da madrugada e no silêncio aparente que me cerca, possas ouvir-me a chamar-te...
- Mas como me escutas – pergunto-te?
É como se fosse um sussurro, ou um grito de alma, não sei; às vezes és desespero e solidão, outras, tão somente, desejo e paixão em destino incerto, és o meu longe e o meu perto.
- E quando te sentiste sozinha? Como te pude deixar, meu amor?
Serenamente, pegas na minha mão e respondes - Abrigo-me diante do mar e fundo-me, em praia...
Um dedo em meus lábios pede que me cale – e continuas:
- Schiuuu, escutas o marulhar? é a minha forma de beijar, como se fosse onda em teu forte, réstia de espuma em teus lábios assim, humedecidos.
Sentes a maresia? É o odor simultaneamente forte, e suave, emanado de corpos fundidos, em areal, assim rendidos. E por isso te aguardo, como anjo de poesia, imbuído de magia.
Quando não estás - Esbato-me, no horizonte, como imagem de solidão mas intensificas a minha presença num elo de sonho misteriosamente descrito na posse das lágrimas e no enlace do sorriso. Vela-te a lua, salpica-te a chuva, sou eu...
E tu, luz que de mim se perdeu?!...
Respondo-te com o coração cheio:
Envolvo-te, rendo-me a ti, e é na sombra onde me perco de ti, que encontro a vontade de te olhar, de cuidar de te tocar sem que o percebas, de trespassar os ódios e os medos que te querem magoar. É na sombra da luz que de ti se perdeu, que deixo os meus olhos abertos e te escuto cantando, que te vejo a dançar, e no teu rosto, encontro o sorriso gémeo da felicidade de te haver. Olho as garças que planam, percebo na aragem tépida o fim da tarde, e a penumbra que chega e me abraça. Deixo que a luz me esqueça e brilhe no teu lado, onde mais tarde ou mais cedo nos espantaremos de outro dia novo, das descobertas das pequenas coisas, das histórias que nos sentam no chão, e nos deixam ficar abraçados, quentes.
Depois meu amor, depois ficamos, com a aventura dos dias que passam um de cada vez, das coisas simples, vestidas do encantamento, e deste destino que nos faz encontrar na praça apenas para nos encontrarmos, e chorarmos e rirmos e nos amarmos outra vez.


FIM

5 comentários:

nas asas de um anjo disse...

Ficou de facto um belo texto!Obrigada pelo convite.bjs

Anónimo disse...

http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,3270.msg14297/topicseen.html#new


já postei no ecritartes!!!bjs

Vanda Paz disse...

Ficou lindo este dueto. Parabéns ao dois.

Beijos

Unknown disse...

Gostei muito :) é sempre tão bom passar por aqui...

Chihiro

Anónimo disse...

Ive read this topic for some blogs. But I think this is more informative.