29.11.06

Aqui sentado


Foto de Jorge Casais

Aqui sentado, escrevendo,
dou-me conta do demónio
que me toma
e me torce as palavras
rebentando-me por dentro
em instantes colhidos
em sentimentos soltos, desventrados,
numa opaca e sublime toga
dos sacerdotes
guardadores de templos
onde nunca ninguém foi adorado.
Aqui sentado, escrevendo
as palavras roçam na mesa
arrepiando os cabelos
como se tivessem areia nas solas,
ou guinchassem em cristais molhados
tocados em círculo.
As palavras tolhem-me
arredondam o meu passo
e desmentem o que quero dizer e não sei.
Sou um surdo-mudo que esperneia
um vendedor de sonhos
em cima de um palanque
gritando de megafone
a gente que me compre
o que quero dar a entender.
Vendo livros de capa rija
bordados das noites em claro
dos pictogramas inexpressivos
das ruas cheias de néon
demoradas de escuridão.
Aqui sentado, pensando
deixo as palavras brincar à minha beira
tocando-as e afagando-as
chamando-as
quando se afastam
decorando seus nomes uma a uma,
sentado junto ao demónio
que não se esconde
nem se disfarça.
Aqui sentado, quieto
deixo as palavras subir em meu colo,
que a noite vai chegando
e todas se querem recolher.

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