A noite está
clara, nem choveu como anunciaram. O candeeiro de luz branca anuncia-se por
cima do teclado, e há um violoncelo que me acompanha num trecho de Bartok. Do
fundo dos dedos rompo as estradas de tudo o que o dia me trouxe, para chegar
aqui.
Na nostalgia
dos sons mudos, o coração borbulha em impaciência pelo dia fosco que a
madrugada há-de trazer.
O tempo vai
rompendo pelas esquinas da sala, o cão dorme sem pressa. Sou apenas eu a
sentir-me, sem mais que eu, neste mundo gigante, de postais coloridos que
colecciono em memórias, sem nenhum tipo de arranjo, que o que imagino se
mistura com o que vi e pensei, e a verdade é uma roleta de feira, enorme e
cheia de números que são sempre os que não escolhi. Afinal não é a verdade que
levo, apenas um prémio e mesmo assim, só caso acertasse, que o homem da roleta é
mercador e sedutor – repetindo em tons largos e quentes um “ vá lá, jogue mais
uma vez – vá lá!” Sempre com o sorriso de quem sabe que, seja qual for o número
que saia, um dia o prémio partirá.
Viajo pelas
feiras e pelas procissões, torno-me menino vestido de anjo, e das avós babadas,
que sem ser assim, nunca teria ganho meia dúzia de bolos doces e grandes,
daqueles que só se ganham nestes dias, quando o calor arde por baixo dos fatos
que picam e fazem comichão.
E de repente
a memória, como borboleta, salta o tempo e voa, e já estou crescido, e já sou
homem dando gritos por ti, que me calas e espantas e me deixas sem ar só de te
ver, as mãos fechadas e esses olhos desconfiados, vermelhos de raiva, que eu amava
antes, aos domingos, quando a missa já me enfadava e tu me enchias o meu ser e
o meu tudo.
Ainda não, volto
atrás; a borboleta saltita, esvoaça como chama de vela na varanda, ainda me
deixo fugir e afundar no sofá das tias gordas, que me empapam de gemadas e paposecos
de chouriço e manteiga, cheios, bons. E deixo-me nesses momentos de rei, ficar
apenas saboreando, os olhos fechados e o conforto de um útero onde fui feliz lá
dentro, amado, refém de coisa nenhuma, no escuro das janelas, dos cheiros a
salas com veludos e carmins, e o capilé que vem depois para me deixar
consolado. Só queria que já fosse outra vez dia de repetir este dia. Aperto os
olhos e sou apenas como estou – bem, muito bem.
E se me
desperto, e se olho bem cá da frente, é apenas para sorrir e saber que já foi o
ontem e o muito ontem, sem volta e sem remédio, e que daqui, daqui donde vejo,
só há caminho para andar. O coração pode sangrar, como as canelas, nos campos
de futebol improvisados nas calçadas, nas pedras das ruas, onde eu era rapaz e
tu, sempre tu, de cabelo escovado e laço azul, te chegavas ao mundo como se
saísse dos figurinos que a minha tia gorda, costureira mostrava às freguesas.
Passo pelas
ruas, sou já homem, o cabelo puxado para trás, colado da brilhantina, um fato
cinzento de domingo, e sorrio, porque as casas velhas sorriem, no sorriso
triste que os velhos emprestam à nostalgia. Só me lembro dos caminhos de terra
por onde eu corria e fugia de tudo e me sentia livre e só. Era ali que as
minhas histórias nasciam e eu podia falar alto e só, e cada muro era apenas um
castelo do meu reino, e o meu cavalo trotava, paus de vassoura roubados nos
quintais ermos, canas da ribeira onde apavorava as rãs, mas debaixo das minhas
pernas, sem mais que os olhos fechados, acreditando que tudo podia ser verdade
e diferente, o meu reino era o portão da casa dos avós, onde os braços enormes
e o riso largo me acolhiam sem me perguntar mais nada, apenas apertavam.
Não vás
borboleta, esvoaça sem destino, não me deixes velho, que eu tenho medo de
esquecer as histórias, e o primeiro beijo com que as mãos abriram outro reino,
e te ofereci o meu por esse sorriso e pela tua mão.
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