4.11.10

A noite dos sons


Ainda agora era dia, quando dei por mim de luz acesa, a noite a correr como um fio de azeite, contínuo, como um rio escancarado, desaguando em rituais de sempre.
Há velhos desdobrando pijamas, cópias das roupas diurnas. Batem de leve, sem certezas, nas almofadas que os ampararão, despertam o berço onde nascerá mais uma noite sem sono, sem sonhos.
No meio dos silêncios que os sons agarram, aguçam-se os ouvidos nas paredes dos vizinhos. Ouve-se tudo o que o dia esconde. Os bebés pungem em choros nocturnos, agudos.
O volupto arfar de uma mulher só, canta a solidão de mãos que dão a cor a quem nada compartilha.
Há quem sorria, e dos sorrisos escancarados me leve à ironia de sorrir também, sem que saibam nem suspeitem o quanto perto é cúmplice as circunstâncias que a vida impõe. Nas gargalhadas de um prazer normal, rompe a aguda angústia que fere.
Nas vidas repartidas que me chegam, cada momento regurgita a inconsistência do tempo, discursos incondicionais, do eu seria, do eu faria, e se eu fugisse, e se fosse e se voltasse, e se estivesse apenas contigo e os sons se calassem e apenas te ouvisse junto ao meu ouvido, pedindo que te amasse.
Ainda agora era dia, e a noite espalha esta luz que teima em ficar, estes momentos precisos em que o tempo não conta.
Depois, quando a madrugada nos exaure, quando o medo da noite já não assusta, e a verdadeira luz chega, é que me amarro nesta almofada companheira e largo o livro onde nada escrevo, tudo sinto, que os sons nada dizem, são apenas sentidos apurados a calar na noite a própria voz que não queremos ouvir.

1 comentário:

Vanda Paz disse...

Excelente!

Beijo