28.7.09

Nas mãos desta cidade

Nas minhas mãos, escondo os teus sorrisos e os beijos que me pediste para guardar.

Na frente da janela, debruçado sobre as sardinheiras, contemplo o vazio azul deste rio que eternamente passa e se esquiva, calado, seguindo o seu destino. A rua tem o som triste da despedida, e o calor das casas, empurra-me para este banco onde me sento, os cotovelos doridos, o olhar perdido e errante na tua demanda.
Da rua, vem o cheiro das sardinhas no pequeno assador, onde o calor não tem corpo, e cada copo de vinho tinto escorre nas gargantas como o mote dos fados que hão-de vir mais tarde. Dois corpos entranham-se na parede caiada, colados pelos lábios, o mundo todo enredado nos braços. Sinto a nostalgia enfunar-se num sorriso, como um barco passando ao largo de um porto, sem pressa, sem vontade, vogando nas memórias, a bandeira do teu rosto desfraldada no vento.
Dou por mim cruzando as calçadas, mãos nos bolsos, o cigarro como leme, levando-me a cada taberna, a cada conversa sobre esta velha cidade, sobre o negro de cada casaco coçado e dos colarinhos desfeitos, desta gente que chega de sotaque, destes marinheiros que voltam a partir, e das conversas repetidas que acabam sempre com a mesma resposta – ninguém a vê, ninguém a viu.
Pelo meio da rua, acotovelo-me deste povo que acordou, os manjericos nas lapelas das pequenas casas onde ainda há traços de gente, o fumo dos cigarros conversando, os copos bailando ao som das gargalhadas, as pombas que já não se recolhem, confundidas desta noite que é mais dia, que os dias cinzentos que ficam na outra metade do relógio.
O meu mapa é certeiro no adivinhar das esquinas e das ruas por onde passeámos tantas vezes, nos dias em que a chuva beija a nossa cidade e as pedras da calçada são mais negras e brilhantes que os candeeiros acesos, transtornados desta luz nova que por ti passa em arrepio; e assim me chego outra vez a cada cantiga que me recorda os nossos beijos, a cada banco destes miradouros onde me perdi em silêncio, a este rio onde sempre cada homem desagua na procura incessante de um porto que nunca vai existir, porque já nasce dentro, cheio de redes, velas e cordame, que são esses teus olhos onde me sinto viajante, esses teus seios onde me amparo e imagino a tua pele macia e clara que me consola das vagas alterosas do tempo velho que nasce a cada dia.
E quando as luzes já não sobram, e os cotovelos rareiam, e os sons destes dias nos largam de mansinho, resta sempre uma pedra do cais para repousar os pés doridos, olhar as luzes do outro lado e perceber o calado de cada barco, de cada traineira trotando com as gaivotas, e sentir a tua mão doce e quente, que cabe à justa na palma da minha mão e tu inteira entras no meu coração, dando à cidade esta luz por onde sei o caminho por onde sempre me vou perder.

2 comentários:

Anónimo disse...

sinto-me a viajar pelos quadros q retratas...as metáforas q utilizas...as imagens q evocas...tão intensas...nostálgicas...bem descritas.

um bj grnd
q bom ler-te!
ana

Luis Ferreira disse...

Excelente texto... os meus parabéns pela forma e apresentação dos maravilhosos quadros que demonstras nas tuas palavras.